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A Journey through the Desert

( First posted in Portuguese,  in March 2016) For Julia , The Princess with the Green Slippers 'Julia! Bernardo!&...

Monday 8 November 2010

Nadando com Peixes

            O despertador tocou às seis e meia, tal como acontecia dia após dia desde que conseguia lembrar-se. Conhecia bem a rotina; levantar-se, lavar-se, vestir-se, comer qualquer coisa e ir para o trabalho. Por que haveria hoje de ser diferente?
            Já no patamar, carregou no botão para chamar o elevador. Aquele minuto que ele demorava a chegar parecia sempre o mais longo. Porque seria? Pronto, cá estava ele.  
            Segurou a pasta firmemente contra as pernas, enquanto o elevador descia. Trigésimo segundo andar. Trigésimo primeiro. Trigésimo. Ao chegar ao vigésimo oitavo andar, parou. A porta abre-se para dar entrada a outra pessoa, mas não está ninguém no patamar. Vigésimo nono. Vigésimo. A porta volta a abrir. Ninguém. Quem lhe dera que estivesse ali alguém. 
            A porta abre-se outras duas vezes antes de chegar ao rés-do-chão. Ela sai do elevador sem olhar uma só vez para o espelho que está atrás si.
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            Ninguém fala. Na verdade, nem sequer levantam os olhos quando ela entra na sala de convívio. Há quinze anos que trabalha naquela empresa. Era de esperar que se lembrassem do seu aniversário. Mas nada. Nem sequer um «olá». Por que se haveriam de lembrar, se ela própria não se tinha dado ao trabalho de vestir o vestido novo que comprara, na semana anterior , especialmente para essa ocasião. Prometera a si própria que a sua vida mudaria depois do aniversário. Que ridículo! Como poderia um vestido alterar tão radicalmente a vida de uma pessoa? Fosse como fosse, mesmo que ele possuísse poderes mágicos, estes tinham-se evaporado, mesmo antes de ela ter chegado ao elevador.
            Será  que dariam por isso se ela não aparecesse para trabalhar, um dia... nem no outro, nem no outro... nunca mais... para sempre? 
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            «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade». Palavras sábias. Pelo menos tinham-na tocado quando o seu apresentador preferido as pronunciou na televisão.
            «Fazem muito sentido», pensou, sentindo um arrepio de excitação percorrer-lhe a espinha ao ter a sua  Epifania. «É agora ou nunca». Agarrando no casaco e bolsa, saiu de casa. Até o elevador pareceu descer de forma diferente os trinta e três andares, flutuando suavemente. E, pela  primeira vez em tantos anos – mal se recordava da última vez em que isso tinha acontecido – a porta abriu-se e alguém entrou. Ela olhou para cima, para os números vermelhos que brilhavam por cima da porta – vigésimo andar. Nunca parecia lá estar alguém quando o elevador parava para recolher passageiros. Sempre se interrogara quem chamaria o elevador para depois não entrar nele.
            Ele devia estar perto dos cinquenta anos de idade. Trazia as calças de ganga seguras por um cinto apertado sob a barriga saliente, a camisa desabotoada até ao umbigo e um crucifixo dourado e grosso pendurado ao pescoço, num fio de malha grossa. O novo passageiro entretinha-se a limpar entre os dentes com a unha comprida do dedo mindinho. Não era a coisa mais agradável de se ver, mas teria adorado ouvi-lo dizer «Boa Tarde».
            «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade. «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade. «Se desejas alguma coisa, tens de fazer com que ela se torne realidade.» Com a confiança que lhe era conferida pelo poder do número sagrado, três, deu por si a dizer «Boa Tarde». No entanto, ou a sua voz lhe saiu demasiado fraca, apenas murmurando as palavras, ou o homem a ignorou, prosseguindo com a limpeza dos dentes, com maior afinco, acrescentando alguns efeitos sonoros à operação.
            Ela não se deixou derrotar. Afinal, o facto de alguém ter entrado no elevador, já era bom sinal, não era?
            Entrou numas quantas lojas e percorreu os expositores de roupa, sem que alguém lhe prestasse atenção. Nenhuma das empregadas de loja olhou sequer para ela.
            Na montra da loja seguinte, os seus olhos pousaram no mais belo vestido azul-marinho que alguma vez vira. Era mesmo o que ela queria, discreto mas classe. Usá-lo-ia no dia do seu aniversário, daí a uma semana.  Ajudá-la-ia a começar de novo.
            Entrou na loja e pediu para o experimentar. Era o único que restava e parecia ser o seu número. Que sorte!
            A empregada da loja olhou-a de alto abaixo e perguntou-lhe se não seria melhor experimentar outro vestido que tivesse um preço mais acessível. Com as faces a arder , respondeu que não, que queria experimentar aquele mesmo.
            Na cabina de provas, a sua mente remoía de fúria e vergonha. Verdade seja dita, a vergonha suplantava a fúria, e limitou-se a despir-se, experimentar o vestido e a voltar a vestir-se, sem nunca se olhar ao espelho.
            – Vou levá-lo – disse. A mulher tinha razão, era caro demais para a sua carteira, mas não podia voltar atrás agora. A excitação que sentira anteriormente estava a dissipar-se a cada passo que dava e, quando chegou ao elevador, a cabeça pendia-lhe, tal era o seu desalento, enquanto o braço arrastava o saco, incrivelmente pesado, que transportava o vestido azul.
            O vestido, que durante momentos fervilhara com promessas de uma vida nova, foi atirado, ainda no saco, para recanto mais escondido e escuro do roupeiro. Depois, ela deitou-se para só acordar na manhã seguinte ao som do despertador. Eram seis e meia da manhã.
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            Janet. – Sobressaltada, ouviu a voz do patrão chamar pelo intercomunicador. Não que se tivesse sobressaltado por não se chamar Janet. Há muito que se tinha habituado a ser chamada por esse nome. Janet fora a primeira secretária do patrão, há uns vinte e cinco anos atrás e, a partir daí, ele nunca se tinha dado ao trabalho de aprender o nome das secretárias.  Tinha desistido de o corrigir e, muito embora assinasse sempre o seu próprio nome nos e-mails, ele nunca reparava . Na verdade, nunca o lia. Nunca perdia tempo e sempre soubera  distinguir o que era realmente importante e requeria a sua atenção, e o que eram pormenores fúteis. Não era por acaso que lhe tinham dado a alcunha de “Máquina de Fazer Dinheiro”. Sabia que era bom e todos à sua volta também. Não, o que a apanhou de surpresa foi o facto de ele ter utilizado o intercomunicador. Nunca lhe dirigia a palavra, nem sequer para retribuir o seu «Bom Dia, Sr. Lynch», quando passava pela sua secretária de manhã. Era como se fosse invisível. Para além disso, ela podia passar dias inteiros sem o ver. Havia dias em que ele era o primeiro a chegar ao escritório, noutros chegava quando todos tinham saído para almoçar. Verdade seja dita, não precisavam de comunicar. Hoje em dia, tudo podia ser feito através de e-mails.
            – Quer que vá ao seu gabinete, Sr. Lynch?” – perguntou. Talvez tivesse estado a ver os dossiers do pessoal, que lhe tinha deixado em cima da secretária no dia anterior, e se tivesse apercebido de que fazia anos hoje. Estremeceu de emoção.
            – Não é necessário. Como sabe – não sabia, mas não tardaria a descobrir – decidimos fazer uma reestruturação e necessitamos de reduzir o pessoal. Passe pelos Recursos Humanos esta tarde para podermos começar a tratar da papelada. Não precisaremos mais dos seus serviços. Entretanto, envie-me por e-mail os documentos sobre a Smith & Co.
            – Mas... – Mas nada. Ele já tinha desligado.
            Não conseguia parar de tremer. «Acalma-te. Acalma-te. Concentra-te na luz. Estou rodeada pela luz pura da energia. Estou rodeada pela luz pura da energia. Estou rodeada pela luz pura da energia …  Rodeada...Luz...Energia...Finalmente parou de tremer e a sua mente foi dominada pela Sua presença.»
          «Chegou a hora. Estás pronta. Vai ter comigo ao penhasco onde as gaivotas se encontram. Há um banco à beira do penhasco. Espera aí por mim».
            O seu corpo tremia agora de excitação. Ele nunca lhe parecera tão real. Na verdade, era a primeira vez que o seu Guia lhe falava; até então sempre fora apenas uma presença reconfortante que a fazia sentir-se segura.
            Pôs-se de pé, vestiu o casaco e, sem olhar para trás ou uma palavra a alguém, saiu do escritório. 
            Ia já  para lá. 
v
           

– Wheeee... – Estou a voar! Que leveza! Que liberdade! Que beleza! E olhem para aqueles pássaros – eles gostam da minha companhia! Vêem? Eu também consigo voar!
            Fechando os olhos, deixou que a brisa fresca lhe acariciasse o rosto e lhe brincasse com o cabelo. Pela primeira vez na vida, sentia a alegria de estar viva.
            Mas também se sentia a cair a toda a velocidade.
            Abriu os olhos e teve um vislumbre fugaz dos peixes prateados, que nadavam nas águas frias e cinzentas, antes de se juntar a eles.
            –  Ui, isso doeu! Tenho de aperfeiçoar o meu mergulho.
            – Olhem para mim, eu consigo nadar e rodopiar como uma sereia.
            E depois, um silêncio profundo e solitário tomou conta de tudo.
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            Foi nesse silencio sufocante que Lydia ouviu o seu coração bater pela primeira vez.
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            Deu por si a correr pelo corredor largo de um palácio, contornando as enormes colunas ornamentadas. Tudo acontecia tão depressa que se sentia tonta. Ou talvez essa sensação fosse apenas resultado da sua descida repentina e em espiral, pela fria escadaria de pedra. Não sabia para onde ia nem por que tão depressa; era como se uma poderosa força magnética a puxasse.
            Havia actividade em cada patamar da escadaria, mas tudo acontecia demasiado longe para que conseguisse distinguir o que se passava, ou estava com demasiada pressa para parar e ver o que estava a acontecer. Num dos patamares, um majestoso anjo, envolto numa intensa luz dourada, olhava directamente para ela.
            Invadida por uma poderosa sensação de bem-estar e amor, parou por um instante, desejando poder ficar. Mas não podia... a força que a chamava do interior da terra era demasiado poderosa, por isso, retomou a sua descida.
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            A transformação decorria a nível celular. Sentia-o.
            Quando a descida finalmente chegou ao fim, vestia uma túnica longa e prateada e o cabelo, branco-prateado, dava-lhe pela cintura. À sua frente estendia-se um corredor comprido e escuro, iluminado apenas pela luz que emanava de uma esfera de fogo amarelo que trazia nas mãos. No fim do corredor, um berço de madeira esperava a esfera incandescente que imediatamente se transformou num autêntico fogo de artifício de cores. A jovem estava tão extasiada de felicidade que não conseguiu evitar que as lágrimas lhe escorressem pelas faces. Eram lágrimas de sangue.
            Num momento eram lágrimas de sangue e, noutro, tinta ritual no rosto de uma jovem índia, ajoelhada no chão, esfregando energicamente dois paus para acender uma fogueira, enquanto entoava o cântigo da vida: 

Fogo, Fogo
Que ardes tão alto
Chegou a hora
Toca o Céu!
Rostos pintados p´ro alto olhando
Enquanto pés cansados
No solo estéril se

firmam 

Ao ritmo do Caos
avançando
Iluminai-nos,
Ó Chamas Esbeltas!
Guiem-nos pelas mágoas do Tempo
Queimem a dor
De vidas torturadas
Deixem que as suas cinzas
Cubram as planícies
Com sementes de esperança  –
Nem que seja por um só dia  


            Nenhuma chama surgiu. Em vez disso, a figura de um homem com barba surgiu do fumo, apontando para as montanhas que se erguiam ao longe, no horizonte. Era para aí que tinha de ir.
            Durante muito tempo subiu a montanha e, ao faltarem-lhe as forças, transformou-se num puma. No cimo da montanha, o puma transformou-se num homem, que olhou em volta e para longe, para escolher o caminho que devia seguir. Depois, ao saltar para o abismo, transformou-se numa águia, que lutou corajosamente contra os ventos fortes, até surgir a necessidade de outra transformação. Desta vez, um cavalo alado foi chamado a enfrentar o desafio ...
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            Uma mulher tenta acalmar o animal cansado. – Calma. Acalma-te – diz ela, acariciando a testa de Pégasus. – O mundo não vai desvanecer-se. Tu não vais desaparecer... – E, a pouco e pouco Lydia reapareceu.
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            Com a mão ainda pousada na testa de Lydia, a mulher gravou-lhe estas palavras intemporais na mente:

Por um campo de narcisos
O pequeno príncipe passeia
Uma rajada de vento sopra
E o mundo que conhece
Dissolve-se.
Agora uma mulher
ao sabor do vento se balança
Na cabeça, uma farta coroa
De folhas
Para os penhascos correndo
            Mergulha!
Imploram os peixes prateados lá em baixo
            Voa!
Gritam as gaivotas esfomeadas lá no alto
            Pára! Não saltes mais!
Rezam os narcisos amarelos
Será que não vês?
É tempo de ficar
Finca os pés bem no solo

Com os teus ramos, afasta as núvens
Agora um carvalho,
Aproeveita o dia
E aprende que esta vida também
Como um momento fugaz
Para sempre desesaparece 

            –  Estás pronta. Regressa e vive esta nova vida.
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            Assim, portadora da força da índia, do puma, do homem, da águia e do cavalo alado, Lydia inicia a sua longa caminhada até casa – ao longo das margens de um rio e descendo as paredes rochosas de uma majestosa queda de água. Durante toda essa longa viagem, pára apenas uma vez, para apanhar um narciso amarelo. Antes de o seu nariz tocar na flor, dá por si novamente junto do berço, onde encontra um bebé deitado. Consciente do que tem de fazer, pega-lhe e, com ele nos braços, sobe a escadaria em espiral.
            Ao cimo das escadas, um homem espera-a e ela entrega-lhe o rapazinho.
            Num apertado abraço, tornam-se um só. Tudo está como devia ser... ou talvez nem tudo, pois é invadida por uma sensação de inquietude, uma sensação de que algo ficou por fazer..
v
            Sentindo o apelo do anjo que vira no patamar de baixo, decide voltar trás. Sente que o tempo se está a esgotar, mas precisa de saber.
            – Quem és tu?
            – Sou Ariel – responde ele numa voz  suave.
            –  Tens alguma mensagem para mim? Tens algo para me dizer?
            – Não. Quero apenas desejar-te um feliz aniversário – disse o anjo com um brilho divertido no olhar meigo.
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            –  Não faço anos.. O meu aniversário é em Março. Não é em Setembro, pois não?
            Foi então que caiu em si. Que tipo de partidas estaria a sua mente a pregar-lhe? Num momento tinha saltado do penhasco e, no outro, estava ainda ali…
            Com as pernas a tremerem, recuou, afastando-se da borda do penhasco, e sentou-se no chão. Ariel... então era assim que se chamava o seu Anjo da Guarda! Ele tinha feito mais do que desejar-lhe um feliz aniversário. Tinha-a conduzido pela morte e guiado de volta para a vida. Não voltaria a saltar. Fincaria os pés na vida e espantaria as nuvens escuras.
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            Olá. O meu nome é Lydia e faço anos no dia 2 de Setembro.



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